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mês que vem
33
idade de cristo, said they

barba bigode cabelo
uns panos compridos coloridos, escorraçar uns demos
até jejuar
e um monte de palavras incompreensíveis eu também já

de presente só queria, porém
uma viagem pro pará-belém
e aquele séquito de bofes amém

E, no entanto, se não suportares a vida que te foi dada, vai-te dela como quem morre atirando. Morre como quem estreia e, resistindo até o fim, deixou atrás de si apenas rastros de beleza e alegria. Recusa-te a dar vitória à tristeza que te abate: que dela não reste uma lembrança sequer.

Spinoza pensava a alegria como aumento da potência de agir. Lembrei-me de quando nos conhecemos e te escrevi falando sobre alegria, sobre como queria fazer as coisas para e por ter você por perto. Guardo sempre esse texto, embora creia que esteja já turvo em nossas memórias.

Não importa. Hoje, e diariamente, sinto que posso agir menos e com menos intensidade. Tristeza para Spinoza e para mim. Mas penso em como alegrar-me, em buscar uma via ativa, em como posso desentravar meu pensamento. Ando triste, e ter tua imagem em meu horizonte me lembra de como fui redescobrindo, há alguns anos, que poderia agir novamente.

Alguns diriam que continuo guiado por afecções, que agir em razão de uma presença outra é apenas sucumbir a uma causalidade diversa. Não creio que haja possibilidade de vida sem padecimento, mas também não há submissão aqui, pois reencontro, aos poucos, alguma nesga de força.

Mesmo nas horas mais insuportáveis, penso em ti e quero saber qual vida podemos levar juntos. Não quero ser domado pelo que me entrava, mas criar modos de atravessar inteiro aquilo que me atravessa.

Há um quê trágico na alegria quando, na ocasião em que não se pode escapar do fardo da existência, decide-se assumi-lo como mote de vida. Quero tudo, que tem sido quase nada; mas, assim mesmo, o desejo como se fosse a última chance de fazer alguma coisa. Quero essa miséria como minha de direito, como minha possibilidade de vida, e não de morte. Afirmo-a diante do abismo, equilibrando-me em ponta de bailarina. Giro um pouco, doem os dedos; permaneço em ponta, sangrando até depois do último aplauso. Depois disso, escalda-pés, banho e cama, com a sensação de ter feito de minha dor a mais bela forma e ação de que fui capaz.

Alegro-me, pois, sem estar feliz, sem estar satisfeito, sem sequer sorrir de canto. Alegro-me doendo, porque, agora havendo apenas dor e confusão, ao menos que eu as converta em movimento.

Por vezes, o que me corrói me faz sentir vivo. Ou no limiar entre a vida e a morte, como as mulheres ressentidas de García Lorca. Sou como Bernarda Alba, talvez, movida por um verme a lhe fazer cócegas doloridas nas vísceras. Amarga, apegada, avara. E que por isso resiste em pé. Ou como Joana, ou como Medeia. Como Perpétua e seu luto militante.

Poderia me justificar dizendo que não se deve romantizar o ressentimento, e que o ciúme nunca é bom. Viver não é, porém, questão de estar bem, mas de estar em primeiro lugar vivo.

E quando, como agora, meu peito sufoca; quando queima tudo por dentro e os dentes só têm fome de ranger de raiva; quando a voz só se modula no registro do urro de dor; quando é tudo tão insuportável que até mesmo escrevo (como se morfina fosse…): quando esse meu oxiúro íntimo sobe à boca, quando arranho lábios e face para que aliviem o sintoma dessa verminose maldita, quando meu organismo se contorce inteiro para decidir se o expulsa ou engole, se o aniquila ou engorda: aí então sei que algo me sustém.

Viver, senhores, nunca foi questão de ser coerente ou bom, e sim de estar vivo com as ferramentas que se tem à mão. Pode-se sonhar com ferramentas melhores, e até mesmo fabricá-las. Mas muitas vezes só se tem um verme comprido que carcome e vicia seu o hospedeiro. Cordão liso e delgado que mataria de abstinência se fosse extirpado e faria definhar se não o fosse.

Soube muitas coisas tuas, entre silêncios, gritos e palavras abafadas. Li tuas cifras raras tantas vezes!… assim como leste as minhas (embora mais vulgares). Ah, Esther!: já codinome este teu nome: nome enclausurado em outro, como bonecas russas de porcelana.

Não há muitos anos, sonhei que me visitavas e eu pude te dar o último abraço, compartilhar o último sorriso contigo. Sei que eternizei-te num poema, que chegaste mesmo a ler. Mas a textura de teus cabelos, essa somente no sonho pude resgatar. Eram tão macios e mornos como quando estavas conosco. E que fossem mornos, essa era outra de tuas cifras, pois sempre tinhas frio dentro de casa e do peito.

Esther, Ishtar, K.: como Kadosh, mil nomes que se multiplicam e evitam por nunca poderem ser ditos diretamente. Por nunca mais, perdido o Éden, haver a possibilidade de contemplar a face de quem se retirou irrevogavelmente de nossa presença ordinária.

Somente em sonho teu calor brando me apareceu outra vez. Embora seja provável que pela última vez.

K. Ishtar, repito teu nome como um mantra na esperança arrogante de te invocar aqui. De prolongar teu abraço e encostar teus cachos em meu rosto quando preciso de um calor delicado.

K. Ishtar. K. Ishtar. K. Ishtar. K. Ishtar.

K. Ishtar.

Mas não vens, bem sei.

, e, como havíamos rido muito, tempo houve em que pareceu-me lícito ir além. Mas não sem hesitar. Tranquei-me dentro o quanto pude, pois assusta dar a ver a fina camada de bolor das minhas horas de solilóquio. Não sei se pela tonalidade multicolorida (verde-branca-azul-amarela) ou se, ainda mais confuso, aquele aroma meio putrefato, meio cítrico e refrescante. Quanta ambiguidade há em mim, ambiguidade que nem eu mesmo sei acolher. Mas entrego-a em tuas mãos, meio desastradamente pois ela me escorre pelos dedos. Mas toma-a, toma-a se e como puderes. E, mesmo desastrado, até mesmo se indevido e impertinente, ao menos poder errar diante de ti é um sinal de bonança: pois poucas vezes me foi permitido sonhar em errar com alguém. Abri-me ao abismo do erro quando me abri à tua presença, abismos cuja perpendicular me constitui inteiro enquanto te escrevo.

No fundo da concha, ouço mar. Não é mar, eu sei, mas ouvi. É uma coisa sem exterior, tautologia audível: o som de meu corpo que o atinge como se fosse outro.

Essa ficção marítima, acolhida por um esqueleto vácuo, comporta também palavras que me contestam. Que me pedem sinais. Então, se de meu interior sai o mar pelos ouvidos, de minha boca saem parcas palavras – intermitências fracas de minha impotência recorrente do dizer, anacrônicas como garrafas indatáveis e suas mensagens. Estas boiam à orla, lacradas, jangadas cifradas por algum milagre ainda existentes. Pois poderiam ter se quebrado em algum momento, ou jamais ressurgirem na costa (o que para elas significa, na prática, não existir). Mas boiam, sacolejando meio estúpidas a qualquer movimento da infinita salmoura em que foram jogadas. E há uma psicologia dessas estupidezas cifradas que boiam, que consiste precisamente na fantasmagoria vítrea de uma mensagem eternamente expelida sem esperar acolhida. Apátridas, navegam esses segredos sem paragem. Apátridas, sem âncoras que possam lhes resgatar do tiro que um dia os expeliu e condenou a flutuar por aí. Apátridas, estúpidas para todos aqueles que vivem em terra firme (não escapam nem os coqueiros e as plantas de raízes superficiais). Estúpidas porque sua natureza é vagar sem porquê. Vagar por dentro de si mesmas, obsessivas com sua movimentação como máxima finalidade de seu ser. Como única relação possível a si… Estúpidas como o movimento de ouvir o mar por dentro de uma concha sabendo não ser mar. Só não menos inocentes que aqueles que, tentando abrir as rolhas desses fantasmas boiantes, pensam interromper a falta de sentido de uma garrafa atirada ao léu.

Ao menos uma sabedoria dessas urnas-missivas: suportar inteiras seu movimento de ser sem fim.

Alegria, razão, repetição. Repetir a razão como alegria, alegria como repetição, a razão como o que permite suportar alegremente a repetição. E, no entanto, saber que o peso da existência tenderá a tornar a repetição um fardo, a alegria uma ilusão e a razão uma melancolia. Mas a lição da repetição não é exatamente mostrar que não há fardo, não mais nem menos que uma escapatória do peso da existência? Que o peso não se mede senão como medição, isto é, como a medida de uma força contra outra força? Que alegria é isto: o movimento e a medida de um jogo de forças? Que a salvação da razão é a possibilidade de ilusão, quer dizer, de aparência?

Quando o peso torna triste a medida da razão, nem sempre é possível aumentar sua força. Há limites para a alegria. Mas, pelo jogo do eterno retorno, do amor fati, também o limite não seria uma repetição – portanto, não diverso do infinito?

Suportar o limite de sua potência, pois, faz parte do jogo da repetição. Quando a alegria e a razão falham, quando não podem, quando intransitivamente não podem, isso é próprio da alegria e da razão. Que não possam tudo: apenas Deus pode tudo.

Mas Deus não morreu?

Quantas vezes se morre e renasce por dia?

Quantas vezes se pode morrer por dia? Sem saber se se vai renascer?

Enerva-me quando solicitam minhas palavras a toque de caixa. Urgência imperativa alheia. Não, não há linguagem aqui disponível a qualquer hora. Acreditei abolir meus clichês e isso, essa crença ao menos, tem lá suas consequências. Então, se a estupidez, o extraordinário ou a banalidade dos rituais o exigem, falha-me a língua. Falha da língua: faz entrever que o trauma é uma dimensão ampla, quase lei geral, do dizer.

Quando falo, falo por raridade. Isso para não dizer de quando me faço entender. De resto, cato cacos de linguagem. Caco-fonias possíveis – possíveis em demasia…